Lembro do primeiro atendimento realizado no grupo de familiares do CPER, na qual eu e mais algumas pessoas participamos conjuntamente. Lembro-me da sala com aparência tão residual quanto uma esquizofrenia que embota a alma. Recordo-me dos primeiros rostos que fitei e em todos eles se via marcas de uma vida de sofrimento e de luta. A fala de todos aqueles familiares parecia buscar devotar aquele sofrimento que ambos sentiam. Como se quisessem mensurar uma dor – como se buscassem dizer que a dor de cada um sentia era maior ou mais significante do que do outrem.
Então estava configurado o cenário. Uma sala de triste e de mórbida aparência, e pessoas tão tristes e pálidas como a tal sala. Nós os facilitadores do grupo estavam assim no papel de contribuir de alguma forma e conjuntamente com tais indivíduos. Um trabalho deverás difícil, porém não impossível.
Em dado momento na sala, uma fala ressoa de maneira atordoadora “Ah eu já nem me lembro da minha data de nascimento”. Bom, essa fala causou uma revolução em minha mente e ali pude constatar não somente o que os olhos viam, agora podia escutar o próprio som da anulação, o som da perda de identidade. O forte som que diz de certa maneira: “passo a viver pelo meu familiar que é doente e esqueço de mim mesmo”, ou seja, a partir do surgimento da doença, se observava assim que toda a família se mobiliza junto com esse processo de adoecimento.
Quando busco uma forma de ilustrar esse grupo, a imagem que me vem é de um deserto. Onde tudo é difícil e complicado.
Um deserto onde os dias são longos, e você se vê debaixo de um sol escaldante, procurando uma vaga para uma avaliação psiquiatra, onde você se vê ali com um familiar, que precisa ser vigiado, pois teme que este faça mal a alguém ou que até mesmo faça mal a si mesmo. Um deserto em que você não consegue parar nem para pensar em si, pois o tempo é curto para tantas e tantas inspeções médicas e o único maná que desce do céu é um auxílio saúde e quem sabe uma aposentadoria.
Dado deserto onde as noites são mais aterradoras , onde o frio é tanto que dói a alma. Onde a noite é deverás traiçoeira e nela surgem vozes que mandam alguém machucar ou até mesmo “esquartejar” o outro. Onde o sono não é tão saboroso, na verdade é um sono de bombeiro de emergência, pois a qualquer momento você se vê na emergência de alguma situação.
Então assim é esse deserto. E eu e outros colegas estávamos nesse deserto também, pois ao ouvirmos as histórias, os depoimentos, os relatos emocionados. Sentimos o sofrimento de cada participante, mas somos continentes e estamos ali para de alguma forma construir algo em comum ajuda com estes participantes. Sendo assim entendemos que há uma troca – um fazer junto.
Quando estamos no deserto, o que buscamos tanto na fantasia, quanto na realidade é encontrar um oásis. Um lugar que nos proporcione água, um descanso e um incentivo para prosseguir no tal deserto da vida.
O grupo de familiares é assim o oásis. Que se permite construir na medida em que as pessoas passam a gostar de freqüentar o grupo, no passo onde a escuta do outro, permite ao sujeito ver que cada um tem uma dor, um desafio, mas que ninguém sofre mais que outro. Um oásis onde cada um tem um tempo de se ver no reflexo dessas águas e que com isso possa se notar como um “SER”, não apenas um cuidador, mas sim, indivíduo dotado de singularidades. Um oásis onde podemos descansar dos infortúnios da vida. Mas um lugar acima de tudo em que possamos criar, onde possamos nos articular e assim buscar melhorias para nossos familiares.
A sala não vai mudar de aparência e nem tampouco aquele velho ar-condicionado irá parar de roncar de maneira alucinante, mas acredito que as pessoas possam mudar à medida que acreditam que a vida não é somente sofrimento. A idéia de oásis é a idéia de em meio aos muitos desertos existem lugares para se descansar, mas em nenhum momento o deserto deixará de existir. Assim como na clínica, alguém senta ao divã para descansar e verbalizar aquilo que incomoda. No grupo familiar, a mesma coisa acontece, e cadeiras se tornam mais que divãs.
Com isso entendemos esse oásis como um lugar, onde a dor pode ser abarcada por nós profissionais. Um lugar em que os fantasmas não causam tanto medo, nem aos familiares nem tampouco aos profissionais – uma pausa para que se possa trilhar o caminho com uma nova perspectiva.
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